Para aqueles que estão conosco, sobre aqueles que sempre estarão conosco (e minhas últimas memórias do Zé Luca)

Sempre fui fã de Fernando Pessoa, mas sinceramente não consigo explicar a empatia que senti por ele desde o início, durante as aulas de literatura. Seus poemas sempre escritos de diferentes perspectivas por seus pseudônimos me fascinam.

Quando comecei a escrever com mais frequência percebi que poderia escrever sobre vários assuntos, e cada um deles despertava uma parte diferente do meu ‘eu’. No final, para mim, a existência dos pseudônimos de Pessoa fez todo sentido, pois quando escrevo, é como se cada uma das vezes a inspiração viesse de uma Lúcia diferente. De qualquer forma, sempre coloco tudo de mim em meus textos, se é que isso faz algum sentido.

Um outro motivo que me aproxima muito de suas poesias, em especial as de Alberto Caeiro, é o enredo bucólico. De alguma forma, me remete às lembranças da minha infância no interior, da convivência com meus avós maternos quando eram vivos, das histórias sobre a vida no sítio (que cresci escutando), das fotos antigas de família que, quando consigo, passo horas apreciando. Tenho uma conexão forte com o estilo simples do interior, ou melhor, com as pessoas de estilo simples do interior.

Mas a vida nos traz muitas surpresas. Alguns anos depois que perdi a minha avó materna, conheci o meu marido, e minha conexão com os avós dele (do interior de Minas) foi instantânea, eles eram a representação de grande parte da minha essência, da minha origem. Dona Lica lembra muito a minha avó, não só pela aparência, mas pela simpatia e ótima culinária, e o Zé Luca apesar das limitações físicas causadas por um AVC, adorava cuidar da sua horta, inventar novas ‘necessidades’ que iam de marrecos a construções e compartilhar suas histórias, ele tinha uma memória impressionante.

Durante nove anos tive a oportunidade de conviver com essas duas figuras, foi um presente recebê-los como “minha família”, rapidamente conquistaram um espaço enorme no meu coração. Devido à distância, não foi possível convivermos com a frequência que gostaríamos, mas o tempo que passávamos juntos era sempre da melhor qualidade.

Na última semana de setembro deste ano, eu e meu marido saímos de férias e fomos passar alguns dias com eles. Como sempre, tempo gasto com muita qualidade. Nós conversamos muito, comemos muito, rimos muito, passeamos muito, o Zé Luca conseguiu aproveitar o ótimo clima da tarde de uma quinta-feira de sol, que apareceu lindamente após muitos dias de chuva. Neste dia, fomos ao sítio onde costumam pegar leite fresquinho, direto da vaca. Ele brincou com os bezerros, conversou, admirou a paisagem e tentou pegar um pouco de esterco para suas plantas, esta última sem sucesso.

Na sexta-feira à noite, comeu sua refeição favorita: churrasco, preparado com a picanha que veio de São Paulo, sua preferida. Ele amava, e comia mesmo. Mesmo, mesmo! Mas, como eu disse anteriormente, a vida nos traz muitas surpresas, e aquela seria a última semana que passaríamos em sua amável, falante e ao mesmo tempo sonolenta companhia.

A última vez que o vi, no sábado, estávamos apenas eu e ele, me debrucei sobre sua cama de hospital, ele estava bem, espirituoso, enrosquei meu braço naquele monte de fios que interligam homens e máquinas, embananei-me inteira por causa da bolsa que segurava ao mesmo tempo que tentava me livrar daqueles canos e ele riu. Depois, me perguntou se ele estava bonito, e pediu que eu arrumasse seu tufo de cabelo bem branco, como de costume penteado para o lado direito. Ele sempre estava bonito.

Durante nove anos não só ouvi muitas histórias boas dele (as minhas favoritas eram da roça, claro), como vivi muitas histórias boas COM ele. E eu agradeço todos os dias da minha vida por ter tido a oportunidade de conviver com pessoas como o Zé Luca e Dona Lica, que continuarei a importunar e cujas panelas de arroz doce continuarei a raspar, assim como pude conviver com meus saudosos avós Dona Divina, que era só amor, e Seu Celso, que nos deixou cedo demais.

E, nossa! Como eles fazem falta…

Talvez um dia também consiga escrever poemas (e por que não odes) à altura do que foram suas vidas, suas lutas, suas alegrias.  Poderei escrever como Lúcia neta, Lúcia agregada, Lúcia observadora, não sei… neste momento, a única coisa que sei é que só não perde quem nunca teve, e eu tive uma baita sorte.

Deixe um comentário